Depois de recuperar a própria
identidade, filha de desaparecidos da ditadura argentina quer 25 anos de
cadeia para seus falsos pais

Oitenta
e oito bebês nascidos em prisões clandestinas e doados ilegalmente já
foram identificados e localizados por meio das Abuelas de Plaza de Mayo,
o movimento de mulheres que perderam os filhos para a ditadura militar
argentina (1976-1983), mas não desistiram de encontrar os netos. Aos 30
anos, María Eugenia Sampallo Barragán, uma daquelas crianças arrancadas
do convívio com a família, acaba de fincar um marco na história recente
do país. Depois de recuperar a própria identidade, ela está processando o
militar que a tirou da mãe e o casal que simulou ser seus pais. No
tribunal, cuja sentença deve ser anunciada no próximo dia 4, até
vizinhos convocados pela defesa do casal acabaram prestando depoimento
favorável a María Eugenia.
Ela não sabe exatamente quando nem onde nasceu. Tampouco sabe onde passou os primeiros dois ou três meses de vida.
Seus pais, Mirta Barragán e Leonardo Sampallo, foram presos em
dezembro de 1977 em Buenos Aires e levados para um centro de detenção
clandestina. No momento da prisão, Mirta estava grávida de seis meses e
em companhia do filho de três anos, resgatado pela família em uma
dependência policial. De acordo com sobreviventes da prisão clandestina
“El Banco”, Mirta foi levada para o Hospital Militar em fevereiro de
1978. Nunca mais se teve notícia dela nem do companheiro. Antigos
militantes do Partido Comunista Marxista Leninista, os dois eram
operários e atualmente fazem parte das cerca de 30 mil pessoas
desaparecidas durante a Guerra Suja, como é chamada a repressão
desencadeada pela ditadura militar argentina contra seus opositores.
María Eugenia, por sua vez, cresceu num edifício de Constitución, um bairro portenho de classe média,

como
se fosse a filha única de Osvaldo Rivas e María Cristina Gómez Pinto.
Quando tinha cerca de nove anos, uma psicóloga convocada pelo casal
contou-lhe que havia sido adotada depois que os pais biológicos morreram
em um acidente de carro. Interessada em saber mais sobre a sua origem, a
garota tentava com freqüência conversar sobre o assunto. “No decorrer
dos anos, Cristina e Osvaldo me contaram distintas histórias sobre quem
teriam sido os meus pais”, relatou María Eugenia na Justiça. “Me
disseram que era filha da empregada doméstica de meus avós paternos.” Em
outra ocasião, contaram que ela nascera de uma relação extraconjugal da
mãe, uma aeromoça européia. Segundo uma das últimas versões, relatada
por uma amiga da mãe adotiva, ela nascera de uma relação extraconjugal
do militar José Enrique Berthier, um amigo do casal.
ALIADAS María Eugenia (à esq.) descobriu sua história com a ajuda das mulheres da Plaza de Mayo
Logo que teve oportunidade, a garota conferiu a história diretamente
com o militar. Berthier negou a paternidade, mas assumiu que avisara ao
casal que havia uma criança abandonada no Hospital Militar. Com isso,
aumentou ainda mais a inquietude de María Eugenia sobre sua trajetória.
Aos 11 anos, ela já tinha sido procurada por integrantes do grupo
Abuelas de Plaza de Mayo, por conta de uma denúncia anônima. Naquela
época, Rivas e Maria Cristina haviam se separado e o relacionamento
entre María Eugenia e a mãe adotiva era repleto de atritos. Não restava à
garota, no entanto, outra alternativa de lar: um exame de DNA não
detectou nenhuma compatibilidade entre ela e os desaparecidos
registrados no banco de sangue das Abuelas.

Aos
19 anos, María Eugenia rompeu com Rivas e María Cristina e saiu de
casa. Em sua contínua busca pelo próprio passado, apostou no avanço da
tecnologia e fez um novo exame de DNA. Em 2001, resgatou finalmente sua
identidade e se uniu à família verdadeira. A alegria do período foi
rompida pelos falsos pais, que resolveram processá- la por calúnia e
difamação, já que dissera que havia sido maltratada. Ao se defender na
ação, María Eugênia decidiu passar a limpo toda a história e acionou o
casal por ter-lhe roubado a identidade. Na Justiça, vizinhos do casal
confirmaram que o bebê aparecera no apartamento já com dois ou três
meses e se tornara vítima de maus-tratos à medida que crescia.
Convocada pela defesa dos falsos pais, uma das vizinhas repetiu no
tribunal os gritos de María Cristina com a menina, então com cerca de
quatro anos. “Criei você com fraldas de seda. Se não fosse por mim,
estaria jogada na sarjeta, moleca caprichosa. Tinha que ser filha de
guerrilheira para ser tão rebelde”, relembra a testemunha Olga González.
María Eugenia não se lembra da cena, mas está firme em sua decisão de
pedir a condenação máxima – 25 anos – para os falsos pais e para
Berthier, hoje capitão da reserva, que está preso preventivamente.
Ao final de um processo que se arrasta por mais de cinco anos, está comprovado que Berthier a levou ao casal, ainda bebê.
Um médico já falecido atestou seu nascimento como filha natural de
Rivas e María Cristina. “É difícil aceitar pessoas, sejam militares ou
civis, que cometem este tipo de crime”, disse María Eugenia durante uma
das audiências. A sentença do caso está prevista para sair na primeira
semana de abril, 11 dias depois de o golpe militar que selou a sorte de
María Eugenia completar 32 anos.
"Se não fosse por mim, estaria na sarjeta. Tinha que ser filha de guerrilheira para ser tão rebelde"
Da mãe adotiva para María Eugenia, segundo a testemunha Olga González
Fonte: Isto É
Excelente reportagem.
ResponderExcluirinfelizmente as leis de anistia não permitiram a revisão da história, mas a situação legal e política finalmente vem mudando.vamos ver como o Brasil se relacionará com isso.
Márcia Guena