terça-feira, 20 de março de 2012

Guerra não-declarada faz do México o lugar mais perigoso para jornalistas nas Américas

Repórter é testemunha e vítima do estado de medo causado pelo conflito com o narcotráfico, diz pesquisador. 


Violência matou mais de 60 mil pessoas nos últimos seis anos de guerra às drogas no México; jornalistas são testemunhas e alvos 
O último relatório da ONG Repórteres Sem Fronteiras falam clasifica o México como o país mais perigoso das Américas para se exercer a profissão de jornalista. Divide com Honduras, o posto de país com o maior número de jornalistas assasinados, mas lidera o ranking de profissionais de comunicação sequestrados, desaparecidos e ameaçados. Nesse contexto, a autocensura passa a ser, frequentemente, a única forma de sobreviver nessa profissão.
A definição é de Rogelio Flores, coordenador do centro de documentação da revista mexicanaProcesso e pesquisador na Faculdade de Psicologia da UNAM (Universidade Autônoma do México).
O professor publicou recentemente uma pesquisa acadêmica sobre o tema dos traumas e distúrbios emocionais sofridos pelos jornalistas e fotógrafos que trabalham em solo mexicano, sobretudo em temas relacionados ao narcotráfico. E eles são muitos. “77% dos repórteres mexicanos que estão cubrindo o narcotráfico apresentam sintomas de ansiedade, 31% apresentam sintomas depressivos e o pior de tudo é que 32% padecem de sintomas de stress pós-traumático”, diz Flores.
Segundo o pesquisador, são taxas que superam as registradas em conflitos formais, como as guerras no Iraque e no Afeganistão. Nesta entrevista, Flores defende a superação de um certo machismo ainda predominante na sociedade mexicana. “Precisamos aceitar que somos vulneráveis e expostos a certos tipos de traumas. Isso ajudaria a se cuidar mais e a levar essas coisas muito a sério.
Qual é a situação do jornalista que trabalha no México?

O México vive em um estado de guerra informal. Em termos oficiais, não há guerra alguma, mas as evidências são claras. Morreram mais de 60 mil pessoas nos últimos seis anos, além da cifra assombrosa de mais de 10 mil desaparecidos. São números que seriam normais em um país em guerra. Essa guerra está sendo testemunhada por repórteres, fotógrafos, cinegrafistas, e o fato de ter contato com situações de violência tão fortes, como matanças, decapitações, assassinatos massivos e brutais, os afeta psicológica e emocionalmente.

Quais as evidências estatísticas que podemos registrar em sua pesquisa?

Fiz um levantamento estatístico em muitas partes do país afetadas pela violência da guerra ao narcotráfico, nas quais media sintomas de ansiedade, depressão, stress pós-traumático, consumo de álcool e cigarro. Com isso, pude observar que 77% dos repórteres mexicanos que estão cubrindo o narcotráfico apresentam sintomas de ansiedade, 31% apresentam sintomas depressivos e o pior de tudo é que 32% padecem de sintomas de stress pós-traumático. Para que se entenda a gravidade, entre os repórteres que cubriram conflitos bélicos como os da Chechênia ou Afeganistão, foram encontrados indicadores na casa dos 29%. Lá, há guerra formal, aquí as autoridades não aceitam que há uma guerra, mas o impacto da situação mexicana vai além do de outros conflitos bélicos.

Como um profissional da comunicação reage diante de uma situação dramática, violenta?

Em termos psicológicos, depois de uma primeira fase de nojo diante da violência e do sangue, fala-se de um adormecimento emocional, a atitude dos jornalistas que, depois de ver tantas mortes, decapitações, valas comuns do narcotráfico, se insensibilizam. Chega-se a casos em que os jornalistas fazem piadas com a morte e a violência, mas o riso é um mecanismo de proteção. Não zombam do morto, mas se defentem através do riso. O trauma tem diferentes níveis de impacto: a vítima, que padece na própria pele o impacto de um acontecimento violento.

O segundo nível são as pessoas próximas à vítima, os familiares, que reproduzem uma série de sintomas porque mantêm contato com uma pessoa vítima. Mas o impacto do trauma vai mais além do primeiro e segundo níveis: estamos falando do efeito terciário, o dos jornalistas, os que não são vítimas nem familiares, mas se interam de eventos trágicos e começam a reproduzir sintomas de ansiedade, de depressão, de adormecimento emocional, estados de tensão crônica, problemas no sono. Além disso, chega-se a um quarto nível, o do espectador, e o trauma vai muito além da vítima direta, chega a afetar uma sociedade inteira. Sem exageros, pode-se afirmar tranquilamente que o México é um país doente, estamos em uma situação muito dolorosa.
No México, um fenômeno cada vez mais comum é o dos desaparecimentos. Quais são as consequências na psiquê dos jornalistas e familiares das vítimas?

No caso dos desaparecidos, há um elemento a mais. Aí a ausência do ente querido e a incerteza em relação ao que aconteceu geram uma dor não resolvida, que continua presente até que se saiba se o desaparecido está vivo ou está morto, e até que volte a aparecer, com vida ou sem vida. Nesta dor, que afeta uma esposa, um filho, um irmão, não para por aí, mas se transmite a todas as pessoas que estão ao redor. E reflete também a dor de uma sociedade doente. Fazer justiça não elimina o problema psicológico, embora o alivie, pois te dá mais elementos para poder processar o evento e elaborar o duelo. Não se pode elaborar um duelo se não há justiça, mas, desgraçadamente, no México, 99% dos desaparecimentos forçados terminam em impunidade.

Quais são as características dos jornalistas que trabalham no México?

O jornalista no México, sobretudo o que cobre noticias de narcotráfico, é um ator social em duas dimensões: a primeira é a de jornalista-vítima, no sentido de que, por seu trabalho de investigação, seu trabalho de denúncia de atos de corrupção, é objeto de ameaças e de agressões por parte tanto do crime organizado como pelas autoridades, policiais, militares. Uma ameaça de morte é, em si mesma, um acontecimento traumático. Por outro lado, o jornalista também é testemunha, está vendo as vítimas de frente, está vendo o sofrimento, está escutando o testemunho das pessoas que padeceram da violência, mas este contato vai despertar nele algo que, de alguma maneira, está relacionado com sua história pessoal. Entrevistei muitos familiares de jornalistas que diziam 'eu já não quero que meu esposo trabalhe nisto porque é muito perigo que ele está correndo. É  difícil encontrar outro trabalho mas já não quero que exerça o jornalismo'. Então encontrei vários elementos: a censura do jornalista, a censura do meio que tem a linha de não publicar certos assuntos, mas também já está lá a censura da família, porque entra no seio da vida da família.

Há também uma diferença entre medo e ansiedade. O jornalista tem medo quando a ameaça é identificável. O medo é em relação a algo real, concreto, identificável. Mas a ansiedade é algo mais sutil, a ansiedade é um medo sem objeto. É quando o jornalista não está sendo ameaçado mas está respondendo com ideias, com emoções, com percepções, como se fosse ameaçado, ainda que não haja algo objetivo que possa justificar que está em perigo. A fronteira é muito tênue entre o medo e a ansiedade.
Quais podem ser algumas medidas para evitar tantos traumas?

Seguramente, seria útil superar um certo machismo que sobra neste país, para, antes de tudo, aceitar que somos vulneráveis e expostos a certos tipos de traumas. Isso ajudaria a se cuidar mais e a levar essas coisas muito a sério. Outro elemento que pode ajudar é tratar de ter dias livres nos quais não haja espaço para trabalho, passar mais tempo com a família, com os filhos: conviver e brincar com as crianças, em particular, é uma atividade muito importante para quebrar a alienação da violência.

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